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Retratos sem Tempo ou Educação pela Pedra

Luiz Camillo Ozório

Escrito para o catálogo do 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco - 2011

A possibilidade oferecida pelo Salão de Pernambuco de uma obra-pesquisa deve ser sublinhada e destacada. Estimulou-se assim o mergulho no experimental, no não-sabido, no risco que abre novas fronteiras poéticas e existenciais. Pedro David assumiu este compromisso. As séries Homem-Pedra e Impureza nasceram aí. Sertão brasileiro, dois meses de viagem percorridos entre Minas Gerais, Bahia, Pernambuco e Paraíba.

 

A câmera vai registrando a atmosfera inóspita com a qual o homem se depara, se mistura, transformando-se nela e com ela se reinventando. O tempo destas imagens é dilatado, devastado, imemorial. Parece que nada convida ao repouso e nada sugere movimento. As cores, através da luz, expulsam os contornos, o volume, o abrigo. Este registro segue o impulso de Euclides da Cunha e de João Cabral: Educação pela Pedra. Pedra que guarda água, que se enraíza no solo seco, que se mistura aos galhos, aos cactos, ao plástico. Mundo-pedra.

 

Contraditoriamente – e esta é a própria condição da obra – há nesta paisagem sem-tempo uma abertura ao tornar-se outro, à inscrição de uma possibilidade insuspeitada. É como se no sertão o acontecimento surgisse descolado da idéia de novidade e se desse junto ao eterno-retorno do mesmo – a angústia, a ruína....a morte. É trágico, mas é de dentro da tragédia que experienciamos a diferença, a experiência do que se vive por si só e que ninguém pode viver por nós. Estes registros do sertão nos mostram um Brasil arqueológico, originário, sem glamour, nada cordial, desprovido de sensualidade, atravessado pela necessidade de ser, pelo singular.

 

As fotografias da série Impureza revelam uma vontade de intervir sem a presença da história. O que é criado, o artifício, o mundo, veio a ser por conta própria. Não traz memória, nem projeta uma esperança. É a própria constituição do estranho, o estranhamento feito coisa, escultura, pessoa, flor. Algo que não está em casa, que não pertence ao ambiente, não é familiar, mas que marca um lugar, constrói uma interferência que abre uma fenda no sem-tempo.

 

O registro humano aparece sempre em isolamento, solitário, como se fora um cactus ou uma pedra. Seria interessante compará-los às imagens de Robert Frank com os americanos, onde a pobreza não retirava uma ansiedade existencial, um querer minimamente político. Aqui, nestes sertanejos, parece que a geografia é mais contundente que a história, a terra mais veemente que o mundo, a morte mais potente que a vida. Outra vez: são trágicos sem serem propriamente tristes, pois é como se o sentimento estivesse em suspenso, mineralizado, homens-pedra.

 

No vídeo “Birutas” há uma simbiose entre a expressão impessoal das fisionomias e a vibração quase emotiva do plástico. Plástico que é flor e lixo, vida e morte, lirismo e impureza. Há nele como que uma fusão das duas séries, como se o “homem-pedra” se alimentasse com o resíduo poluente e a “impureza” se espiritualizasse diante da secura ardente do sertão. Pedro David reuniu nestas séries de fotografias e vídeo uma parte significativa de nossa complexidade cultural, revelando um país profundo que poucas vezes se faz visível. Nossa riqueza vem junto com a nossa miséria na medida em que combinamos tempos e espaços heterogêneos que vivem em conflito e que não podem ser reduzidos a uma contemporaneidade banal. O sem-tempo destas fotos, esta expressão do anacrônico que vem da pedra e do plástico, serve como registro de um território avesso à aceleração e mobilizado pela necessidade anterior à história. “O sertanejo é um forte”. 

 

  

Luiz Camillo Osorio

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